Um abade artista amigo do ensino e da poesia
Em 24 de Agosto de 1869 Júlio Dinis escrevia ao seu amigo Custódio de Passos uma carta a partir da residência paroquial de S. Salvador de Fânzeres. Entre pedidos de remédios para maleitas próprias e alheias, confidencia-lhe que “o nosso bom abade continua aflito com o calor, desconfiado com a política moderna, e preocupado com a engorda dos seus porcos. Pede-me ele que tu lhe mandes comprar um rol para a roupa da lavadeira, d'esses que têm os objectos pintados, para suprir a falta de ciência das letras de Clemência; quer também uma mão de papel fino para cartas e um maço de envelopes”.
O bom abade era Pinto Outeiro, a Clemência era a criada, os remédios que Júlio Dinis pedia ao Passos eram, respectivamente óleo de croton para o incómodo peitoral e “doze papéis de sulfato” para as dores de “queixos” do Luso.
Esta não é a única referência direta de Júlio Dinis ao amigo Pinto Outeiro, o abade de S. Salvador de Fânzeres, em cuja casa o escritor vinha a ares, fugindo da poluição da cidade grande. Outros tempos, em que Gondomar era uma zona bucólica, com rios límpidos e lameiros verdejantes.
Mas afinal quem era este bom abade, que desconfiava da política moderna? António Pinto Outeiro nasceu na freguesia de S. Nicolau, em 1827, no Porto, na mesma freguesia onde nasceu Júlio Dinis, mais de uma década depois. Foi abade de S. Salvador de Fânzeres durante largos anos, entre 1863 e o ano da sua morte, 1876. Apesar de ter morrido no Porto, subitamente, como refere o assento de óbito, está enterrado no cemitério da freguesia, por vontade que deixou inscrita no seu testamento.
Segundo os documentos, era filho de Francisco António Outeiro, negociante e proprietário e de Ana Angélica de Jesus Outeiro, proprietária, natural de Ancede. Teve dois irmãos, Francisco e Arnaldo, que terão morrido jovens, uma vez que no seu testamento, o abade deixa uma quantia para mandar rezar missas por alma dos irmãos. Há um registo, na Academia de Belas Artes do Porto, da inscrição de António Pinto Outeiro e do seu irmão Francisco nas aulas de gravura e desenho. Curiosamente, no mesmo ano lectivo, 1838/1839, matricula-se também Guilherme Gomes Coelho, padrinho de Júlio Dinis. Terá sido na sequência da relação de amizade e camaradagem entre eles que, anos mais tarde, o abade estreitaria relações com o escritor.
Paralelamente, o jovem estudante de belas artes que seguiu, depois, a carreira eclesiástica, tinha uma forte relação de amizade com Augusto Luso, nascido no mesmo ano que ele, professor de geografia no Liceu do Porto, escritor, poeta e coleccionador de caracóis nas horas vagas, também grande amigo de Júlio Dinis que, percebe-se pela carta, naquele verão de 1869, estava com ele na casa do padre, a sofrer de dores de queixos. Por isso não fizeram a programada pescaria, “e limitou-se o divertimento do dia a simples passeio campestre”, lamenta o autor das “Pupilas do Senhor Reitor”, na carta já mencionada. O Passos a quem Júlio Dinis escreve é Custódio irmão de Soares de Passos, o poeta ultra-romântico autor do famoso poema “Noivado do Sepulcro”, também ele amigo de Júlio Dinis, já que colaboraram os dois na famosa revista “Grinalda”, onde só entravam poetas.
Destas amizades podemos perceber que o Abade de Fânzeres era amigo das letras e da poesia, mas era também homem fértil em consolações, garante Júlio Dinis numa outra missiva, filosofia que, afirma ele com ironia, era “a causa principal da gordura do nosso amigo abade”. Na vasta correspondência entre Custódio Passos e Júlio Dinis são várias as referências ao nosso prior, como por exemplo esta: “Não posso deixar de falar do padre Outeiro. Aquele seu sono é admirável! Que bom frade ali se perdeu! O ministro que o não despachar pratica uma asneira redonda. Daquele estofo faz-se tudo quanto se quiser, até um pastor de povos, pois ainda que o seu sono habitual não pareça grande penhor de salvação de ovelhas, tem tanto de contagioso que é de esperar consiga adormecer os próprios lobos”. Apesar do tom brincalhão, o escritor deixa a entender, em várias outras citações, o respeito que tinha pelo bom abade e a admiração pela sua fé profunda que o levava a tentar converter os amigos mais incrédulos.
Sobre a sua relação com os paroquianos ficou a memória, diluída no tempo, da sua bondade e da forte ligação com os paroquianos. Deixou registos exemplares, nomeadamente os assentos de baptismo, de casamento e de óbito, muito completos no que respeita ao conjunto de dados inscritos, ao contrário do que acontecia, na altura, na maior parte das paróquias. Sobre a freguesia de Fânzeres, no tempo em que o abade Pinto Outeiro lá esteve, ficamos a saber que a maior parte das mulheres era tecedeira de profissão, seguem-se as lavradoras, jornaleiras, criadas de servir e, muito poucas, “empregadas no governo de sua casa”. Porque este senhor abade, apesar da imagem de conservador que Júlio Dinis traça dele, faz questão de colocar sempre a profissão das mães que registavam os filhos. Menciona ainda, em todos os assentos de baptismo, a profissão dos padrinhos e se sabem ou não escrever, a sua residência e se os conhece por saber ou ouvir dizer.
Com os dados recolhidos nestes documentos, ficamos com uma ideia das profissões masculinas mais comuns, nomeadamente as de jornaleiro, lavrador-caseiro, criado de servir, poucos tecelões, ainda menos negociantes e ourives, alguns galinheiros e porqueiros. Tínhamos, pois, uma freguesia eminentemente rural, com muitas oficinas de tecelagem, pelo menos a ter em conta a enorme quantidade tecedeiras que aparecem nos registos. Percebemos ainda que as madrinhas raramente sabiam assinar, alguns padrinhos sabem escrever e deixam a sua assinatura ao lado da do padre, mas o que é comovente, nestes registos quotidianos, é a minúcia do abade (ao ponto de registar as horas e minutos em que nasceu a criança batizada) e a sua preocupação em dar a mesma visibilidade a mulheres e homens.
Outro documento impressionante é o testamento de Pinto Outeiro, cheio de pormenores que nos permitem cruzar informações e retirar algumas ilações. Sabemos por exemplo que gostava muito do nome de Margarida, duas das afilhadas a quem contempla têm este nome, bem como a filha da criada Clemência. Talvez pelo facto de lidar com homens de letras que tinham a noção da importância dos registos escritos na construção da memória, o abade deixou-nos um testamento exemplar, com legados que merecem ser evocados. Este, por exemplo: “Deixo 500 mil reis para ajuda de fazer uma casa para a escola de instrução primária desta freguesia, sendo entregues pelos meus testamenteiros à Junta de Paróquia, logo que a mesma principie”. Com esta quantia e a doação do terreno, por um outro benemérito, a Junta construiu a escola sem nenhum tipo de ajuda do estado. O edifício ainda está de pé e abriga, actualmente, a Guarda Nacional Republicana.
Para além do legado, “à minha criada Clemência da Costa e sua filha Margarida”, de casas na actual Praça da República, no Porto, “bem como todas as roupas brancas e louças que tenho na residência”, Pinto Outeiro deixou ao amigo Augusto Luso outras casas no mesmo local e “as minhas estantes de conchas ao meu amigo doutor Delfim Martins Ferreira (o Dr. Cancelas, um ilustre gondomarense que mereceu também dar nome a uma rua), da freguesia de Rio Tinto, e os meus livros serão repartidos pelos amigos padre Belmiro Joaquim Pereira da Silva e Padre Agostinho de Sousa Neves, ambos de Rio Tinto, o meu relógio com redoma de vidro que tenho na sala de entrada ao meu amigo padre Bernardo Moreira d’Almeida, professor de instrução primária”.
Era assim, tão pormenorizado como se percebe pelas citações, este testamento, feito a 18 de dezembro de 1875, dois meses antes da morte do abade. Foi enterrado no seu jazigo, no cemitério de Fânzeres, onde já estava a sua mãe, que morreu em 1872, com 83 anos, na residência paroquial, tendo sido o próprio filho a fazer o funeral. Percebemos que Pinto Outeiro tinha assumido Fânzeres como a sua terra adoptiva, uma ligação afectiva que os fanzereses lhe retribuíram, dando o seu nome a uma das principais ruas da freguesia.
Terminamos com um poema que Augusto Luso, o geógrafo que punha todos os seus amigos a caçar caracóis para a sua colecção, lhe dedicou na obra “Últimos Versos”.
“Ao abade António Pinto Outeiro Cuidadoso Pastor, que à luz brilhante Da pura caridade, O rebanho guiaste à Fé constante, Que leva á Eternidade; Da pátria dos espíritos olhando Na terra a humanidade, Se os amigos ai te estão lembrando, Aceita a minha dor, minha saudade”.
Margarida Almeida
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