Ourives, poeta, desportista e benemérito, um gondomarense no Brasil
No bairro de Cosmos, no Rio de Janeiro, existe uma escola chamada Comendador Serafim Sofia, uma praça com o nome Sofia Moreira, um clube de futebol denominado Rosita Sofia, mais uma igreja de invocação a Santa Sofia e ainda um monumento em memória deste Serafim, português, nascido em Covelo, Gondomar. Um largo no lugar de Gens, na Foz do Sousa, homenageia este gondomarense, protagonista de uma história cheia de sucesso e de ternura. Legou ao Brasil memórias de bem-fazer e ao mundo um filho que é considerado um dos maiores compositores da MPB (Música Popular do Brasil).
Era uma vez um menino, Serafim, que veio ao mundo na freguesia de Covelo, em Gondomar, no dia 9 de fevereiro de 1897. A mãe chamava-se Sophia Moreira e, segundo o assento de nascimento do filho, tinha sido uma criança exposta do hospício de Penafiel, o que significa que tinha sido abandonada à nascença. Não se sabe quando, nem como veio para Gondomar, sabe-se, contudo, que o pequeno Serafim nasceu, também ele, de pai incógnito.
A vida não terá sido fácil para Sophia e para o seu filho, mas a verdade é que ele cresceu, tornou-se ourives e em 1824, já casado e com, pelo menos, um filho, parte para o Brasil em busca de uma vida melhor. Inicia um novo percurso, num novo país, deixando para trás a sua pequena aldeia. Anos mais tarde, deixaria registado num livro de poesia as memórias da sua infância, em versos singelos mas sentidos: “Bem pertinho da igrejinha,/na estrada que vai p'ra serra,/havia na minha terra/uma choupana velhinha. /Sei que mais pobre não tinha,/mas, assim mesmo, eu gostava,/pois era ali que eu morava,/bem pertinho da igrejinha. /Casinha de pedra nua,/paredes a revestir,/todos podiam ouvir/nossa conversa da rua;/e via-se a própria lua/pelas frestas do telhado./Como é grande o teu passado,/casinha de pedra nua!”
Serafim Moreira nunca esqueceu a aldeia mas também nunca esqueceu a mãe por quem, adivinha-se, tinha uma grande ternura e um imenso orgulho. Em 1943 a mulher e os filhos viajavam no navio Afonso Pena que foi bombardeado por um submarino alemão, Serafim, ao saber a notícia, invocou a protecção de Santa Sofia pedindo o salvamento da família e foi ouvido. Sofia passará a ser, a partir dali, definitivamente, o nome de família que substitui o apelido do pai que nunca teve. Alguns anos depois, conquistado o sucesso com que todos os emigrantes sonham, fica conhecido como Comendador Serafim Sofia, ao ser agraciado pelo Papa, por ter mandado construir uma igreja de invocação à santa com o mesmo nome da mãe.
Exercendo a profissão que tinha aprendido na sua terra natal, à qual associa uma sensibilidade artística que todos os testemunhos lhe reconhecem, Serafim rapidamente conquista um lugar na terra de oportunidades que era o Brasil. Para trás ficou a sua experiência, como operário, nas minas do Pejão e a cabana velhinha. Construiu a sua vida em Campo Grande, nos subúrbios do Rio de Janeiro e dedica-se, de corpo e alma a apoiar o crescimento da comunidade de acolhimento. Montou uma empresa de comércio de peças de ouro, chama a família para o Brasil e cria laços fortes com as gentes desta terra, multicultural e multirracial.
Por volta de 1829 nascia, em Campo Grande, o Bairro Cosmos, que toma este nome por ser construído pela Companhia Kosmos Engenharia e Imobiliária na qual começava a sua carreira o então jovem Oscar Niemeyer (o arquitecto que projetou Brasília). É neste local que se fixa Serafim Sofia, com o seu negócio de joalharia, ajudando ao desenvolvimento da nova zona residencial. É ele que apoia a construção da primeira escola pública bem como do posto de saúde e foi também aqui que mandou construir a igreja de invocação a Santa Sofia. Notícias de jornal afirmam que Serafim Sofia chegou a deter 2/3 das terras de Cosmos, boa parte das quais ofereceu a famílias pobres para que pudessem construir as suas casas.
Em diversos jornais brasileiros, nas décadas de 30, 40, 50 e 60 do século XX, são constantes as referências a este português, gondomarense e para nosso orgulho, são sempre notícias que realçam as qualidades deste homem, como benemérito, sobretudo, mas também como artista e poeta, como amante das actividades desportivas, como divulgador da música e das tradições portuguesas. Não surpreende, por isso, que ainda hoje ele seja lembrado na terra onde viveu grande parte da sua vida, tendo sido dado, recentemente, o nome dele a um Espaço de Desenvolvimento Infantil, em Campo Grande. Muitos brasileiros ainda lembrarão o facto de ter sido o comendador a instituir, em 1945, a campanha “copo de leite e pão com manteiga” que abrangia todas as crianças de Cosmos, e eram muitas porque, no ano seguinte, 1946, foi inaugurada a escola, denominada Rosita Sofia (em homenagem à filha), que ele mandou construir e equipar, com capacidade para 300 meninos. O primeiro posto de saúde desta zona também foi instituído pelo benemérito português que, para além do seu bom coração – alguns jornalistas afirmavam que fazia jus ao seu nome, Serafim o anjo – era também um poeta de qualidade, tendo publicado várias obras, entre as quais O Martírio de Santa Sofia (poema histórico sobre a vida da Santa) e Badaladas do Tempo – Poesias.
Para além da filha Rosita Sofia, que deu nome também a um clube de futebol criado e patrocinado pelo comendador, outro descendente deste nosso patrício, tem o seu nome registado no imaginário colectivo dos brasileiros, foi ele Adelino Moreira, o responsável pela belíssima canção “Negue”, uma composição que tem sido cantada pelas maiores vozes do Brasil. Adelino começou a sua carreira artística no programa de rádio que o pai produzia, na Rádio Clube do Brasil, “Seleções Portuguesas”. Tinha nascido em Covelo, em 1918, e foi com a mãe, menino ainda, para o Brasil. Cantou fado e canções portuguesas, mas depois de uma viagem a Portugal, onde participa numa revista no Sá da Bandeira, regressa ao Rio de Janeiro e decide dedicar-se exclusivamente à composição. E foi uma decisão acertada, porque Adelino Moreira compôs centenas de canções e foi uma das estrelas mais brilhantes dos tempos áureos da canção da rádio, deixando inscrito o seu nome na Música Popular Brasileira. Tal como o pai, Adelino aprendeu a profissão de ourives e seguindo a tradição empreendedora de muitos emigrantes portugueses, teve vários negócios na região de Campo Grande, incluindo um restaurante/Bar, o Cinderela, frequentado por grandes artistas da época.
Adelino Moreira foi o principal compositor de Nélson Gonçalves e escreveu para vários artistas de renome, como Ângela Maria, a cantora da rádio que fascinou várias gerações de brasileiros e de portugueses. A veia artística herdou-a, certamente, do pai, que nos seus primeiros anos no Brasil atuou em diversos locais e surge nos jornais como “Serafim Moreira o famoso cantador”.
Cantador, poeta, benemérito, industrial, desportista e elegante representante da sociedade do seu tempo, o gondomarense Serafim merece, sem dúvida, o carinho dos seus conterrâneos. Até porque, diz-nos o poema que dedicou à sua aldeia natal, ele nunca esqueceu o lugar onde nasceu. Numa das suas vindas a Portugal, em meados do século XX, deixou memórias de bem-fazer, na sua terra natal, que ele descreve assim: “… Cantinho de gente pobre,/eu não consigo olvidar-te!/Meu desejo era cantar-te/como se em palácio nobre,/onde há riqueza que sobre,/tu te houvesses transformado./Sou teu velho enamorado,/cantinho de gente pobre!”.
Margarida Almeida
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