Um padre revolucionário, professor, jornalista e erudito
A religião não casa bem com revoluções nem com novas ideias e, talvez por isso, Camilo de Oliveira tenha renunciado ao sacerdócio para melhor continuar a espalhar os ideais republicanos, a ensinar e a aprender. Autor dos Apontamentos Monográficos de Gondomar, uma obra exaustiva que, em quatro volumes, traça a história do concelho, Camilo Martins de Oliveira é uma figura de múltiplas facetas, que merece ser evocado e mais conhecido pelas suas gentes.
Nascido em março de 1874, na casa da Passagem, em S. Cosme, Camilo de Oliveira foi um dos 14 filhos de José Martins de Oliveira e Teresa Pereira das Neves. Depois de terminar o ensino primário quis continuar a estudar mas, confronta-se com a imposição paterna que o obrigava a escolher entre a profissão de lavrador ou o sacerdócio. Ainda tentou resistir à falta de vocação e vai ajudando a família nas tarefas do campo, mas o amor pelo estudo era mais forte e foi no Seminário dos Carvalhos que fez todo o seu percurso académico.
Feito padre, Camilo de Oliveira exerceu o sacerdócio por alguns anos, mas na primeira década do século XX já se manifestava publicamente contra a monarquia, defendendo ideais republicanos em vários jornais e participando em actividades políticas. Pelo meio escreveu algumas obras onde manifesta, inequivocamente, o seu pensamento, como “O Padre e a República” ou “Uma Cilada Desfeita”.
Verdadeiramente activista, o jovem padre, após a implantação de República, redobrou a sua actividade nos jornais, assumindo em pleno defesa da Lei da Separação do Estado das Igreja. Recorde-se que é Afonso Costa – não por acaso diabolizado pelos meios católicos mais conservadores – que, com a lei de 20 de Abril de 1911, põe fim ao catolicismo como religião do Estado. Com ela afirmava-se a liberdade de consciência, permitem-se as confissões minoritárias, impedia-se o estado de subsidiar a igreja, terminavam-se com as côngruas paroquiais e a gestão da vida religiosa era confiada a associações cultuais. Camilo de Oliveira estava, em 1914, na cultual de S. Mamede Infesta e denunciou a desobediência de muitos padres à nova legislação, nomeadamente no Jornal “O Amigo do Povo” – Folha Republicana Anticlerical, numa coluna intitulada “A Grilheta religiosa”. Num desses artigos referiu-se à existência de padres que diziam missa nas suas próprias casas, a que iam assistir muitas mulheres que levavam, escondidas, as “capas de ir à missa”.
É neste contexto de vivências revolucionárias que Camilo de Oliveira quebra a sua ligação à igreja, torna-se num anticlerical assumido e escolhe a profissão de professor para obter independência financeira. Afinal, não devia ser fácil assinar artigos incendiários com o nome Padre Camilo Oliveira e apelar à paz e à concórdia enquanto protagonizava cenas de pancadaria, como as que decorreram no desparecido Éden-Teatro, em 1919, onde foi, juntamente com outros republicanos do Concelho, barbaramente agredido, na sequência da contra-revolução liderada por Paiva Couceiro, que ficou conhecida como “Monarquia do Norte”.
Lecionou em várias escolas do Porto, incluindo o Liceu D. Carlos e a Escola Oliveira Martins, mas nunca esqueceu a sua terra, como o comprova a obra que nos legou sobre o Concelho, mas também as múltiplas colaborações em jornais locais. Aliás é num da nossa terra, publicado em 1912, chamado Aurora de Gondomar que, em artigo de fundo, traça um retrato pouco animador do concelho. Ouçamo-lo: “Concelho desgraçado, sem homens de prestígio que o valorizem, sem elementos de civilização que o recomendem, sem espírito de solidariedade que o prestigie, o nosso concelho vem, desde Adão, sendo o escárnio dos poderes centrais, teatro de comédias políticas onde se exibem cenas ora de interesses particulares ora de vaidades tolas.”. Acutilante, Camilo de Oliveira continua a enumerar as razões para o subdesenvolvimento aviltante: “Podia ser grande esta terra se não enfermasse do espírito de desunião e da febre do caciquismo. O espírito de desunião é consequência de elementos preponderantes que jamais cedem suas tendências às de interesse geral; a febre de caciquismo, herança da monarquia, é o alarde vaidoso de quem quer ser mais do que os outros. Eu tenho sido vítima dos maníacos da superioridade. Por várias vezes tenho ajudado pela pena a organizar-se um jornal defensor dos interesses concelhios”.
E lá estava ele, o jornal Aurora de Gondomar, dirigido pelo Dr. Belleza de Andrade, editado por Lino Figueiroa e secretariado por Serafim Rosas, que se assumia como órgão oficial da Comissão Política Republicana de Gondomar. A terminar o seu editorial, Camilo de Oliveira garantia aos gondomarenses: “Podeis contar comigo, por amor à terra onde nasci, terra que eu gostaria de ver progredir, terra que tem jus a nivelar-se com as melhores do país, pela riqueza do solo, pela excelência da indústria e pela pequena distância que a separa do Porto”.
Mas escreveu também noutros órgãos de comunicação, nomeadamente no jornal “A Nossa Terra”, também de Gondomar, nos jornais do Porto “A Verdade” e “ O Tripeiro”, “O Norte”, “O Amigo do Povo” e “A República Portuguesa”, na revista “Ourivesaria Portuguesa”, no gaiense “Cinco de Outubro” e no jornal “O Combate” de Rio Tinto. Uma actividade intensa, como se pode comprovar pelos títulos enumerados e que, provavelmente, não foram os únicos onde a sua pena serviu a ideologia republicana.
Apesar de completamente envolvido no furacão que foi a vida política da I República, Camilo de Oliveira organizou a sua vida, casou com Emília Ferreira de Oliveira, de quem teve cinco filhos. Paralelamente, continuava a dedicar-se ao ensino, leccionando português, francês, história e geografia e foi autor de uma obra pedagógica de referência, “Noções de Gramática Portuguesa”, que teve cinco edições, entre 1928 e 1935.
Mas não se ficava por aqui a actividade profissional deste gondomarense, às horas que dedicava ao ensino, acumulou mais seis horas de trabalho diário na Biblioteca Municipal do Porto, onde foi funcionário durante 18 anos. Foi aí, calculamos, que recolheu e organizou muito do material que constitui a Monografia de Gondomar, feita a expensas suas, ao longo de 12 anos.
Quando se reformou, por limite de idade, na escola Oliveira Martins foi homenageado por todo o corpo docente e funcionários, e na biblioteca foi-lhe feita uma despedida emocionada, cerimónias que tiveram eco na imprensa diária. O jornal “O Comércio do Porto” transcreveu os diversos discursos de despedida e neles destacam-se as qualidades deste homem, quer como professor “porque foste amigo dos teus alunos, procurando sempre, com digno esforço, incutir-lhes nos espíritos em botão a semente do saber”; quer como ser humano íntegro, “podes sair daqui com a cabeça levantada, porque não usaste jamais de subterfúgios, nem de fraudes, nem de subornos, no desempenho das tuas pesadas obrigações. Porque foste um mestre competente e um juiz incorrupto”.
Camilo de Oliveira morreu, em 1946, com 72 anos. Deixava uma família e um passado feito de batalhas e concretizações. Um dos seus filhos, Camilo Afonso Máximo Cimourdain Ferreira de Oliveira, nascido em 1912, fez uma carreira académica brilhante, tendo sido considerado o decano dos professores de Contabilidade. Exerceu funções docentes até aos 88 anos, na faculdade de Economia da Universidade do Porto, foi director do Departamento de Gestão de Empresas e Vice-reitor da Universidade Portucalense e é considerado um dos principais responsáveis pela organização da Contabilidade e Fiscalidade, como áreas de especialização, sobre as quais escreveu mais de 20 obras. Apesar de ter nascido no Porto, o filho mais velho de Camilo de Oliveira desempenhou funções, como consultor económico, naquela que foi uma dais maiores empresas de Rio Tinto, a Mondex. Cimourdain de Oliveira foi convidado para o cargo pelo fundador da “Fábrica de Malhas Mondego” (Mondex), Fernando Miguel Rodrigues Júnior. Morreu em 2008, com 96 anos de idade, inscrevendo o nome Cimourdain – único na onomástica portuguesa - na história académica nacional, o mesmo nome que Victor Hugo deu a uma personagem da sua obra “Quatrevingt-treize”, que, curiosamente ou talvez não, era um ex-padre e professor que aderiu à causa revolucionária da nova França republicana. Cimoudain Oliveira imitou, pela capacidade de trabalho e dedicação ao ensino, o seu pai, uma figura de que Gondomar se pode e deve orgulhar.
Margarida Almeida
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