Entre a santidade e a política, um abade gondomarense
Em Gondomar nasceram dois bispos e temos tido muitos padres que marcaram as gentes das paróquias onde exerceram o seu sacerdócio. De Gondomar é, também, um abade que estudou no Porto e conquistou fama de Santo na Foz do Douro, local onde ainda hoje é venerado. O seu nome é José dos Santos Ferreira Moura, que ficou conhecido como abade Moura, nascido no lugar de Ervedosa, em S. Pedro da Cova. Um homem bom que dá nome a uma rua da terra onde nasceu e que deixou memórias de santidade.
No dia 29 de abril de 1839, na casa dos pais, António dos Santos natural de Rio Tinto e de Teresa Isabel nascida e criada em Ervedosa, nasceu José, o terceiro filho deste casal de lavradores. Com sete anos de idade ficou órfão de pai, um marco triste na infância do pequeno José que passava os seus dias a ajudar nas tarefas do campo. A mãe, quatro anos passados, volta a casar, com o cunhado, padrinho dos filhos, e ambos começam a pensar no futuro das crianças. Como era comum naquele tempo, a emigração para o Brasil era o sonho de muitas famílias que procuravam a árvore das patacas no outro lado do Atlântico. O pequeno José é o escolhido para ir ter com um tio, já instalado no Rio de Janeiro. Foi, mas rapidamente percebe que aquele não era o seu destino. Meses depois regressa a Portugal e é encaminhado para o sacerdócio. Primeiro estudou no Colégio da Formiga (em Ermesinde) e em dezembro de 1856 recebe as quatro ordens menores, sob o patrocínio do bispo do Porto, D. António Bernardo da Fonseca Moniz. Entrou, de seguida, no Seminário do Porto, dedicando-se ao estudo e conquistando fama de aluno exemplar, em termos académicos e humanos.
A mãe assistia, orgulhosa, à consolidação de uma vocação que enobrecia a família e José é dotado com os campos da Cavada de Cima e outras propriedades. Estava tudo preparado para a celebração, em setembro de 1862, da ordenação sacerdotal do jovem padre. É um outro gondomarense, o nosso conhecido D. João de Castro e Moura, então bispo do Porto, que nomeia José Ferreira Moura como capelão das Dominicanas de Corpus Christi (convento feminino em Vila Nova de Gaia, na margem do Douro). Apesar da sua entrega à vida religiosa, o jovem padre não prescinde da envolvência na vida política do país, que tinha atravessado uma guerra civil longa e fraturante, iniciando um ciclo de paz e desenvolvimento do país, com a Regeneração. É precisamente no partido Regenerador que o padre Moura encontra o seu lugar, tendo sido eleito, em 1871, procurador à Junta Geral do Distrito do Porto pelo concelho de Valongo e, obviamente, pelo seu concelho natal, Gondomar.
Em 1873, por morte do abade de São João da Foz do Douro, o capelão do convento das monjas dominicanas é nomeado para presidir à pequena paróquia. A Foz do Douro era, naquele tempo, um lugarejo de pescadores, com forte pendor religioso, que ganhava alguma animação na época balnear, quando os carroções despejavam nas praias os banhistas citadinos. Foi nesta freguesia que o padre Moura conquistou fama de grande orador, mas também de homem empenhado na promoção da terra de que era líder espiritual. Mas se a ação e as obras terrenas deste pároco marcaram a freguesia de S. João da Foz, como se percebe pela leitura dos jornais da época, foi o seu espírito caritativo e o exercício em pleno da sua vocação, que ficou gravado no coração da população. Protegia os pobres e os doentes e, dizem os testemunhos, todos os seus recursos eram destinados à caridade.
Eram famosas as prédicas do padre Moura e a igreja de S. João da Foz enchia de gente, proveniente de diversas lugares do Porto, para assistir à missa e ouvir as palavras inspiradas do bom abade. Inspirada mas polémica foi a actividade política em que se envolveu o padre José de Moura. Regenerador convicto, o pároco entrou em conflito com elementos do partido Progressistas, nomeadamente com o seu líder local, António Carneiro dos Santos - proprietário do Chalet Suiço, ainda existente no Passeio Alegre, encimado pela figura de um carneiro – uma rivalidade que se estendia a todas as áreas. Em 1886 o padre Moura quis organizar, pela primeira vez na Foz, a procissão do Sagrado Coração de Jesus, os progressistas conseguiram assumir o controlo da Confraria do Santíssimo Sacramento, através de uma comissão administrativa que fechou à chave os objetos de culto e mesmo os bancos do altar, procurando impedir a realização da procissão. Mas o padre era persistente e a festividade acabou por acontecer, com um estrondoso sucesso, segundo os jornais da época.
Com uma cultura vasta e um sentido de responsabilidade acentuado, o abade Moura fundou a Associação Protetora de Socorros Mútuos da Foz do Douro em 1877 e a Banda Marcial da Foz em 1883. Os opositores políticos fundaram, em 1879, a Associação de Beneficência de S. João da Foz, para fazerem frente à popularidade cada vez mais acentuada do padre, contudo, anos depois as duas coletividades fundiram-se e nasceu a Associação de Socorros Mútuos da Foz, que sobreviveu até 1977 e foi, ao longo de muitas décadas, uma instituição de referência na localidade. A 22 de Maio de 1887 o padre Moura fez o seu último sermão, na Capela de Nossa Senhora da Ajuda, em Lordelo do Ouro. Estava um dia de temporal, o abade apanhou uma constipação que degenerou em pneumonia e após cerca de 15 dias de sofrimento sucumbiu. Morreu pobre e foi chorado pelos seus paroquianos mais humildes e desfavorecidos.
Não havia um lugar digno no cemitério para o sepultar e, porque era muito querido, levantaram-se vontades e projectos para lhe construírem um mausoléu. O seu inimigo político, na altura presidente da Junta, António Carneiro dos Santos, ofereceu o jazigo de família para que o corpo do abade ali repousasse até ser encontrada uma última morada digna. Paralelamente, levou a Junta a abrir uma subscrição pública para a construção de um jazigo. Mas os amigos e familiares do padre, nomeadamente dois dos seus irmãos, já depois de a subscrição estar a decorrer (com contribuições do regedor e membros da Junta), informaram que não aceitavam a homenagem, criando uma nova comissão para angariação de fundos para o jazigo. Com o dinheiro já recebido, a Junta mandou celebrar uma missa e distribuiu pelos pobres o remanescente. Mas não acabou aqui o conflito. As disputas políticas adiaram a construção do jazigo e foi mesmo necessário que um tribunal intimasse a Junta a despachar o pedido de cedência do terreno para construção do mausoléu, feito pelos irmãos do abade. Antes disso, já João Arroyo, deputado ao parlamento, tinha denunciado em Lisboa as irregularidades da Junta, que demorava a deferir o processo.
O jornal “O Globo” de 10 de março de 1889 historiava, numa notícia, “a celebre questão do mausoléu do fallecido abbade Moura, que tanto pasto deu à intriga política. A junta de parochia, esquecendo-se simplesmente do parocho da freguezia, quiz expontaneamente erigir-lhe, por meio de uma subscripção publica, um monumento onde repousassem os restos mortaes do reverendo Moura, que tão cedo se finou, devido, talvez, mais á incarniçada lucta de uma política cheia de ódios e de rancores, do que ao trabalho de converter a heresia”. Finalmente, depois de arrecadados 437 mil e 570 réis, em 26 de dezembro de 1889 foi efectuada a trasladação do cadáver, ainda a obra não estava completamente terminada. Muitos anos depois, corria o ano de 1925, nova comissão é constituída para angariar verbas para erigir duas capelas, uma das quais destinada, por vontade popular, a receber o corpo do abade Moura. É que a coluna que encimava o mausoléu partiu, na sequência de um temporal, quebrando o jazigo e deixando visível o corpo incorrupto do abade. Rapidamente alastrou a fama de santo e brotou do povo a ideia da construção de uma capela onde o bom abade da Foz pudesse ser visitado pelos crentes.
Há quem diga que foi mesmo o espírito do abade que, descontente com as intrigas que a construção do mausoléu tinha gerado, fez abanar a coluna até partir o jazigo. Certo, certo é que nenhuma das fações políticas ganhou, já que a última morada do padre Moura está vazia e o seu corpo repousa, na capela, local de romaria para aqueles que acreditam na sua santidade.
Em Gondomar, mais precisamente na freguesia onde nasceu, há uma rua com o nome deste padre bom, que nos orgulha e, apesar das gentes de S. João da Foz assumirem como seu o nosso abade, nenhuma artéria daquela freguesia do Porto recorda este pároco, que, milagrosamente, se dividiu entre a política e a bondade.
Margarida Almeida
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