O Bispo liberal do Porto que Roma nunca reconheceu
Dá nome a uma rua e a uma travessa na freguesia de Baguim do Monte, o assento de nascimento diz que Manuel, filho de Inácio Ferreira e Maria Antónia, do lugar do Pipo, nasceu a 4 de dezembro de 1762 e que foi baptizado pelo padre Manuel Ferreira. A tradição conta que era filho de humildes lavradores e que foi a vontade e a inteligência que o fizeram percorrer o caminho da fama. É Frei Manuel de Santa Inês, o bispo que o Porto amou mas que a hierarquia da igreja conservou no limbo.
A vida de Manuel Ferreira tinha tudo para seguir o padrão de alguns meninos daqueles tempos, que se destacavam pela inteligência e eram, por isso, encaminhados para a Igreja. Mas, desde muito jovem, Manuel Ferreira quis reforçar esse destino, destacando-se logo que entrou para o mosteiro dos Eremitas Descalços de Santo Agostinho (a que o povo deu o nome de Colégio dos Grilos) onde professou em 1781. Adoptou, então, o nome de Frei Manuel de Santa Inês e exerceu aí vários cargos de responsabilidade, pelo “raro aproveitamento no estudo”, garante o seu biógrafo Henrique Duarte de Sousa Reis, que foi seu secretário privado.
Em 1808, quando da primeira invasão francesa, o Bispo do Porto da altura, D. António de S. José de Castro, ordenou que o clero tomasse armas. Santa Inês assume o cargo de cabo de esquadra numa companhia de religiosos e ajuda a defender o Paço Episcopal, então quartel-general de uma cidade sitiada pelos franceses de Soult. Os acontecimentos precipitam-se, em março de 1809 o exército invasor entra na cidade e o povo foge em direcção ao sul, bem como o Bispo que deve ter assistido, da Serra do Pilar, onde se tinha escudado, à tragédia brutal da Ponte das Barcas que colapsou devido ao peso de uma multidão aterrorizada que a tentava atravessar.
Entre a derrota dos franceses, em 1810 e a revolução liberal, de 1820, Manuel de Santa Inês, que viveu largos períodos no Convento Mão Poderosa (Ermesinde), dos Agostinhos Descalços, destacou-se na hierarquia desta casa, tendo sido eleito Geral da Ordem em 1816. O seu biógrafo afirma que reformou costumes, cortou abusos e colheu muitos elogios e gratidões. Quando o Porto vivia momentos de terror, durante o período de vigência da regência de D. Miguel, o exército libertador de D. Pedro IV desembarca no Mindelo e instala-se na cidade para reorganizar a luta pela restauração do liberalismo. Ao chegar à cidade o “imortal D. Pedro, Duque de Bragança e Bourbon, terror dos Déspotas, azorrague dos Tiranos e conquistador das Liberdades e foros da Pátria”, nas palavras veementes de Henrique de Sousa Reis, “nela não encontrou a autoridade eclesiástica, o Bispo D. João de Magalhães e Avelar”. Este tinha fugido para Lamego e D. Pedro trata de o substituir, assim como a todas as autoridades que tinham abandonado as suas responsabilidades. Depois de “bem informado” nomeia Frei Manuel de Santa Inês Vigário Capitular, que fica ainda com o governo espiritual do arcebispado de Braga, através de um decreto assinado por Mouzinho da Silveira. A nomeação não foi pacífica e o cabido do Porto não vê com bons modos a decisão de D. Pedro, aliás confirmada em 15 de agosto de 1833, estava já o seu governo em Lisboa, estabelecendo que Santa Inês, para além de Vigário capitular e governador temporal era bispo eleito do Porto.
Alguns historiadores interrogam-se quanto às razões que levaram D. Pedro a chamar este frade para senhor espiritual da cidade. A explicação, garante Augusto Ferreira, nas Memórias Arqueológico-Históricas da Cidade do Porto, está no facto de Santa Inês se ter manifestado abertamente liberal logo após a revolução de 1820 mas, sobretudo, ter sido bastante ativo na defesa dos implicados no movimento de 16 de Maio de 1828, que pretendia derrubar a regência de D. Miguel. Recorde-se que o Porto assistiu, horrorizado, à forma como os absolutistas esmagaram os implicados neste movimento, tendo condenado à forca vários conjurados, numa cerimónia de castigo exemplar, na Praça Nova (praça da Liberdade).
A eleição de Santa Inês nunca foi confirmada pelo vaticano, aliás, Portugal tinha iniciado, com a revolução liberal, um cisma religioso que se estendeu até meados do século XIX e para boa parte do clero português o Bispo eleito por D. Pedro era um usurpador. Isso não o impediu de governar a sua igreja da melhor forma: enriqueceu a Sé do Porto com preciosas alfaias, conseguiu que o governo concedesse a Igreja de S. Lourenço para funcionamento do Seminário Diocesano e negociou com a Câmara do Porto a cedência de terrenos, da quinta do Prado, que pertencia ao Bispo, para criação do primeiro cemitério municipal, o do Prado do Repouso, que ele próprio benzeu. Aliás, dizem as velhas crónicas que foi na sequência da cerimónia, feita a 1 de dezembro de 1839, dia de chuva torrencial, que Santa Inês adoeceu, acabando por morrer sem testamento a 24 de janeiro de 1840.
A cidade vestiu-se de luto pelo bispo que se tinha associado à matriz liberal dos portuenses e, por isso, juntou-se uma multidão no amplo recinto da Sé do Porto. Estranharam todos que o corpo do prelado não estivesse na capela-mor e não tivesse a assistência do cabido, mas quando os religiosos tentaram levar o féretro para os claustros, num lugar onde noutros tempos se enterravam os pobres, é que o povo se levantou num tumulto. A revolta foi tão grande que a 6 de fevereiro o ministério da Justiça lança uma portaria para que se investigassem os desacatos ocorridos.
Apesar da relutância do Cabido em prestar as homenagens devidas a um bispo, os portuenses exigiram que o cadáver fosse sepultado na Real Capela da Lapa, o que veio a acontecer, com grande pompa, sendo o seu jazigo um dos primeiros que o cemitério privativo desta ordem veio a possuir, mandado erigir pelos habitantes da cidade. O soberbo mausoléu tem inscrito o respeito dos portuenses à memória de D. Manuel e, num dos lados, é possível ler a seguinte dedicatória, demonstrativa do respeito que o povo lhe votava: “A mitra não cingiu a sua fronte, mas falte a mitra embora, dessa falta nada seu grande nome se ressente. Adornado, como ele, de virtudes, outro não existiu, que assim cumprisse do sacro ministério as funções todas”.
Se da vida pública ficaram registos, do seu percurso privado pouco sabemos. Teve um irmão, João, que também foi frade e teve, certamente, muitos outros irmãos que a história não registou. Baguim do Monte prestou-lhe homenagem, dando o seu nome a duas artérias e mandando fazer um busto que colocou no largo de S. Brás, junto á igreja paroquial.
Do século XVIII resta, em Baguim, o topónimo Pipo, que dá nome a uma rua e restam vagos relatos de uma terra fértil, de muitos pequenos lavradores e alguns grandes proprietários. Um deles, terá sido Domingos Coutinho de Amorim que no ano em que nasceu o nosso D. Manuel, era dono de uma escrava chamada Antónia que teve, em 27 de Abril de 1762 um filho, Custódio, também escravo. Os arquivos paroquiais desvendam-nos, por vezes, realidades que a história oficial escondeu. Porque da vida e da morte dos escravos, no Portugal continental, pouco ou nada sabemos. Fica aqui o registo, deste Custódio, conterrâneo de um bispo revolucionário e, também ele, filho de Gondomar.
Margarida Almeida
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