Entre Portugal e o Oriente – o Bispo que gostava de livros
Nasceu em Gondomar e correu o mundo enquanto religioso, atingiu o topo da carreira eclesiástica e foi bispo eleito de Pequim e do Porto. Na sua terra não faltam as referências a este homem, à sua proximidade com a população, ao seu amor pelos livros e à casa dos França que, em S. Cosme, é conhecida como a casa onde nasceu o bispo. D. João de França Castro e Moura é, sem sombra de dúvida, um dos mais ilustres gondomarenses e dá, com toda a justiça, nome a ruas e a uma praceta, no concelho.
Nasceu no lugar da Azenha, em S. Cosme, em 19 de março de 1804, filho de António João e Rosa de França, proprietários agrícolas abastados, como se pode confirmar pela traça da casa que possuíam, um amplo edifício rural mas com pormenores que o enobrecem.
Como era vulgar acontecer nas famílias abastadas dos proprietários rurais da época, um ou mais filhos seria destinado à vida eclesiástica. Foi o que aconteceu a João de França que, com apenas 11 anos foi entregue aos cuidados do tio materno, dr. José de França Castro Moura, vigário geral de Penafiel para, sob os seus cuidados, iniciar os estudos académicos. Em 1820, ano em que o Porto lançou a revolução liberal, o jovem estudante ingressou no Seminário existente na Quinta do Prado, junto às Fontaínhas do Porto e anos depois são-lhe conferidas Ordens Menores pelo bispo D. João de Magalhães e Avelar. Destinado às missões no Oriente, João de França parte para Lisboa, preparou-se para missionário na Congregação da Missão e em Abril de 1825 viajou para Macau, continuando a sua ordenação no colégio de S. José, recebendo, posteriormente, em Manila (Filipinas) as ordens sacras de diácono e presbítero. Celebrou a primeira missa em 1830 e ainda nesse ano partiu para a província chinesa de Fokien. Por alguns anos, o jovem padre passa pelas vicissitudes inerentes à função de missionário, com perseguições e provações várias. Foi nestas paragens que apanhou a febre tifóide e a malária, doença que o perseguiu até à sua morte.
Na altura, o governo português atravessava um período de relações conturbadas com o Vaticano, por razões que tinham a ver com a situação política em Portugal e as alterações liberais na relação com a igreja mas, também, relativamente ao direito de padroado de Portugal no Oriente. É neste contexto que D. João de França é eleito bispo de Pequim, cargo que exerce até ser obrigado, por Roma, a regressar a Macau. Terminou, com ele, o exercício do direito de padroado na diocese de Pequim. Em 1850, o ainda bispo eleito de Pequim aguarda, em Macau, que o governo português resolvesse a questão dos direitos do nosso país sobre a igreja do Oriente. Entretanto, decide prosseguir a sua tarefa missionária junto dos indígenas de Timor, missão complicada pela existência de inúmeros dialectos locais que dificultavam a comunicação. Volta a Portugal em 1853, depois de 28 anos de evangelização no oriente. Portugal perde, entretanto e definitivamente, o padroado no Oriente e D. João a esperança de regressar à sua missão.
Em Junho de 1857, D. João de França regressou ao Porto e instalou-se na vasta Quinta do Pinheiro, na zona oriental da cidade, anos depois desmembrada para construção da estação central de caminho-de-ferro, que toma o nome de estação do Pinheiro mas que todos conhecem por Campanhã. Aí viveu, num palacete que recebeu em 1863 o Seminário dos Meninos Desamparados, doado a esta instituição pelo proprietário, Luís António Gonçalves de Lima, mas a pedido do então já bispo do Porto, D. João de França, grande amigo do doador. Recorde-se que esta instituição nasceu para promover o amparo dos meninos que tinham ficado órfãos na sequência da tragédia da Ponte das Barcas, em 1809. Os portuenses em fuga dos soldados franceses que invadiram o Porto, tentaram atravessar o rio e a ponte colapsou, levando consigo milhares de vidas e deixando centenas de órfãos.
Quando vagou a diocese do Porto, por morte do bispo D. António Bernardo, foi apontado D. João de França para o suceder. O ministro da Justiça, Morais Carvalho, disse na sessão de 21 de fevereiro de 1862 da Câmara dos Pares: “aquele que se me apresentou mais digno foi o Eleito Bispo de Pekim. Eu não tinha a honra e o gosto de conhecer S. Exª e, por isso, tratei de tomar as informações mais circunstanciadas e todas elas foram excelentes”. Solicitado a anuência de D. João de França este, depois de alguns dias para tomar uma decisão acedeu a ser nomeado, o que aconteceu por decreto de 27 de fevereiro do mesmo ano. Em agosto o novo bispo do Porto entra solenemente na cidade invicta, onde se manteve até à sua morte, em 1868.
A ele se deve a abertura do seminário, no Colégio de S. Lourenço que começou a funcionar no ano lectivo de 1862/1863. A sua debilitada saúde obrigava-o a recolher-se com frequência em zonas mais rurais e é possível que tenha passado longas temporadas na casa da família, em Gondomar, bem como na quinta do Pinheiro. Contudo, em 1863 tomou assento na Câmara dos Pares, em Lisboa, função a que tinha direito por inerência do seu cargo episcopal. Aí fez algumas intervenções que lhe valeram a antipatia de muitos parlamentares, nomeadamente pela defesa acérrima dos direitos da igreja, quando se discutia o regime do provimento dos benefícios eclesiásticos. D. João de França proclamava os direitos sagrados da hierarquia da igreja na escolha dos seus membros, criticando a possibilidade dessa escolha ser feita segundo a vontade arbitrária dos que regem a sociedade civil. Ouçamo-lo: “Não posso deixar de deplorar uma série de actos, pelos quais o poder executivo se tem considerado senhor de alterar, modificar e até destruir a legislação canónica a pretexto de regular o exercício do real padroado, e de executar as prescrições do artº 75 da Carta Constitucional”.
D. João de França defendia energicamente aquilo em que acreditava e que amava, por isso usou toda a sua vontade para dotar o Seminário que tinha aberto de uma biblioteca capaz de ajudar a formação do clero. O seu trabalho nesta área iniciou, de acordo com os historiadores, a época de ouro do Seminário do Porto e a inauguração da sua amada biblioteca integrou uma cerimónia que incluiu a apresentação do retrato episcopal de D. João, à qual não pode assistir por se encontrar já muito doente.
Mas, para além do amor aos livros, o bispo do Porto fazia questão em exercer em pleno a sua vocação de eclesiástico. Assim, em 29 de Junho de 1867 encontra-se em Roma para a celebração do décimo-oitavo centenário do martírio de S. Pedro e Paulo, sendo agraciado pelo Papa com o título de Prelado Assistente ao Sólio Pontifício.
Regressado a Portugal, continuou a promover Visitas Pastorais às igrejas de diferentes comarcas. A de S. Cosme, sua terra Natal, foi também visitada por ele e apesar de lhe terem colocado um trono no altar-mor recusou-o, tendo com simplicidade falado aos fiéis e administrado o crisma. A 16 de março de 1868, depois de longo sofrimento provocado pelas doenças que tinha apanhado no Oriente, D. João de Castro e Moura morre, sem testamento. Diz o seu biógrafo, Augusto ferreira, na obra Memórias Arqueológico-históricas da Cidade do Porto que se distinguiu pela humildade e bondade, empregando os rendimentos da mitra em esmolas e em melhorar o Seminário, instituição que recebeu todos os seus livros.
D. João era grande bibliófilo e na sua vasta biblioteca existiam muitos livros chineses. Segundo Camilo de Oliveira, o autor da Monografia de Gondomar, encontrava-se na Biblioteca Municipal do Porto uma caixa de papelão, com uma folha manuscrita colada no exterior que dizia: “colecção de livros chineses oferecidos a esta Real Biblioteca Portuense pelo Ex.mo e Reve.mo Sr. D. João daFrança Castro e Moura, bispo eleito de Pekin, depois Bispo do Porto”.
Ainda em vida, D. João fez publicar, por Ernesto Chardron e Bartolomeu H. de Morais, um manuscrito que possuía do Grande Diccionario portuguez ou Thesouro da lingua portugueza, em cinco volumes, de Fr. Domingos Vieira. Também escreveu a obra “Breve Relação da Propagação da Religião Christã na China desde o Século XVI até Nossos Dias”.
Da família França Castro e Moura ainda existem muitos descendentes a viver em Gondomar. Alguns deles tiveram cargos importantes na vida pública do concelho, como se depreende de uma leitura atenta às atas das sessões camarárias onde a presença destes apelidos é uma constante. A memória das gentes recorda o amor pelos livros deste prelado e a sua humildade. A história da literatura assinala que da sua família era a primeira mulher de Camilo, a celebrada "Quininha”, nascida Joaquina Pereira de França, que morreu jovem, em Friúme, abandonada pelo escritor que, no Porto, iniciava a sua carreira literária.
Margarida Almeida
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